quarta-feira, 22 de junho de 2016

O livro dispositivo

    Você sabia que Pássaros Artificiais é um projeto transmídia? Que as histórias a serem contadas nessa HQ não se limitarão somente a suas páginas, refletindo-se em outras tramas, desde livros até web-séries? Que a mente maluca por trás disso tudo elaborou um manifesto só para falar sobre suas intenções com essas histórias ambientadas no interior do Rio de Janeiro, mais precisamente na cidade de Macuco?
     O primeiro ponto deste manifesto é o livro dispositivo: conceito adotado de Deleuze e Guattari, tratando a obra de arte literária como um objeto divisível em seções esquemáticas. Em outras palavras, temos aqui um dispositivo disforme, agenciando eventos e personagens que volta e meia retornam à atenção do leitor disposto a uma leitura que busque acompanhar o caráter totalizante e fragmentário deste projeto. A observação dessas ligações, no entanto, se compromete, haja vista que as diferentes histórias não se apresentam sob um único teto ou formato. Felizmente, isso lhes concede uma liberdade segmentar que não existiria caso todas as narrativas se apresentassem num só ponto.

Pássaros Artificiais é uma história mutante,
que será publicada de uma maneira aberta às vontades do leitor
     Talvez seja um bom momento para se lembrar que essa HQ é, por si só, uma reinvenção dela mesma. Nesse blog, você pode encontrar uma versão anterior dessa página. As narrativas aqui propostas, um grande romance subdividido em seções não esquemáticas, se valem de um dispositivo disforme, um agenciamento de eventos e personagens que volta e meia retornam à atenção do leitor disposto a acompanhar a totalidade dos acontecimentos ou de um pesquisador com determinação suficiente para se debruçar sobre todas as histórias, já publicadas ou não.
     Deleuze e Guattari nos dizem que o agenciamento das séries só pode ser feito se a grande série se dividir em subséries. Analisando a obra de Kafka, em Por Uma Literatura Menor, eles se detém sobre O Processo:


Esse funcionamento do agenciamento só pode ser explicado se forem levados em consideração, desmontando-o, os elementos que o compõem e a natureza de suas ligações. Os personagens do Processo aparecem em uma grande série que não cessa de proliferar: todo mundo com efeito, é funcionário ou auxiliar de justiça (e no Castelo todo mundo tem a ver com o castelo), não somente juízes, os advogados, os oficiais de justiça, os policiais, mesmo os acusados, mas também as mulheres, as jovens, o pintor Titorelli, o próprio K. Assim, a grande série se divide em subséries. (…) Ora, a primeira característica dessas séries proliferantes é que elas vão desbloquear uma situação que, em outro lugar, as fechava em um beco sem saída. (DELEUZE, GUATTARI, 1977, p. 28)


     No nosso caso específico, as personagens de Tocando anu para Cantagalo, são em sua maioria contadores de histórias. Jornalistas, escritores, cineastas e quadrinhistas dividem a cena com bêbados, maconheiros e loucos que só querem a oportunidade, também, de contarem suas histórias, seus pontos de vista diversos sobre os mesmos elementos.
     O poder de se observar ou ser observado nessas narrativas é reprimido pela ideia de que nem todas foram publicadas ou estão disponíveis num mesmo local de armazenamento, mas isso também lhes concede uma liberdade segmentar que não existiria caso todas as narrativas se apresentassem num só ponto. Afinal, Deleuze e Guattari nos dizem que “cada segmento é uma máquina, ou uma peça de máquina, mas a máquina não é desmontada sem que cada uma de suas peças contíguas não constitua máquina por sua vez, tomando cada vez mais lugar.” (IDEM, p. 84)
  A arquitetura da informação de nossas narrativas é baseada na proliferação das séries, desterritorializando os padrões de linguagem ao mesmo tempo em que territorializa as ações contidas nelas. Vale ainda dizer que esse movimento estético da desordem pré-determinada não é pura paúra do academicismo literário, tampouco autoindulgência criativa, mas sim um esforço de completude e compreensão (ainda que anárquica) da obra.

Já que a história do mundo é feita, de modo algum de um eterno retorno, mas do impulso de segmentos sempre novos e cada vez mais duros, será acelerada essa rapidez de segmentariedade, essa rapidez de produção segmentar, serão precipitadas as séries segmentarizadas, serão acrescentadas. Já que as máquinas coletivas e sociais operam uma desterritorialização maciça do homem, prosseguir-se-á ainda mais longe nesse caminho até uma desterritorialização molecular absoluta. A crítica é inteiramente inútil. É muito mais importante desposar o movimento virtual, que já é real sem ser atual (os conformistas, os burocratas não deixam de interromper o movimento nesse ou naquele ponto). Não se trata de modo algum de uma política do pior, muito menos de uma caricatura literária, menos ainda de ficção científica. (IBIDEM IDEM, p. 87)

     Assim, o que falamos aqui é de uma possibilidade narrativa onde o livro seja algo mais que o volume de papéis ou o amontoado de bytes presentes para um leitor digital. A correlação de histórias trazidas sob o título de Tocandoanu para Cantagalo fazem parte de uma rede, onde os objetos em análise não se encontram presos ou estanques, mas ainda assim, em constante interconexão.


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