quarta-feira, 20 de julho de 2016

sexta-feira, 1 de julho de 2016

O Transrealismo

    Se você já se deparou com o Manifesto Tocando anu para Cantagalo, é provável que tenha percebido que um de seus itens faz menção a um outro manifesto, o Transrealista. Queporréssa?, você se pergunta.
    Bem, desenvolvido pelo matemático e autor de ficção científica Rudy Rucker, o Manifesto Transrealista propõe um tipo de ficção onde personagens não se submetem aos caprichos de seus autores. A ideia, basicamente tão simples, é libertar-se dos maniqueísmos, abraçar idiossincrasias da contemporaneidade e oferecer um programa de leitura e criação que sejam desafiadores, onde cada mente é capaz de oferecer uma nova realidade e interpretação, com uma constante abertura de significados. A leitura deve servir como um meio à reflexão, não como uma ferramenta condicionante e alienante do universo proposto pelo autor.

Página inédita! :)
     Quando escreveu o Manifesto Transrealista Rudy Rucker era docente na Ruprecht-Karls-Universität Heidelberg, na Alemanha, e publicado no Boletim nº 82 da Science Fiction & Fantasy Writers of America. Nele, Rucker propunha um tipo de ficção onde as personagens não se submetem simplesmente aos caprichos do autor, onde “as ações se tornam previsíveis e no diálogo é difícil dizer qual personagem supostamente está falando. Na vida real, as pessoas que você encontra, quase nunca dizem aquilo que você espera que elas digam.” (RUCKER, 1980, p. 1) O manifesto transrealista busca uma expressão literária que hoje pode nos parecer comum, mas que ainda carece de explicações em certos meios:


Em um romance transrealista, o autor freqüentemente aparece como personagem, ou a sua personalidade está dividida entre vários personagens. Dizendo assim parece até egoísta. Mas posso argumentar que usar a si mesmo como personagem não é egoísmo de verdade. É simplesmente uma necessidade. Se, de fato, você está escrevendo sobre percepções imediatas, então que outro ponto de vista senão o seu é possível?
É bem mais egoístico utilizar uma versão idealizada de si mesmo, fantasiando-a, e tendo este 'para-você' desabafando a sua vontade através de embalagens flexíveis escravas. O protagonista transrealista não é apresentado como um tipo de super-herói. O protagonista transrealista é um neurótico inútil, como nós mesmos sabemos ser.
O artista transrealista não pode predizer a forma final de seu trabalho.
O romance transrealista cresce organicamente, como se tivesse vida própria. O autor pode apenas escolher personagens e cenários, introduzir este ou aquele elemento fantástico e direcionar para certas cenas chaves. Em condições ideais, o romance transrealista é escrito na obscuridade, sem uma linha geral ou esboço. Se o autor sabe precisamente como seu livro irá se desenvolver, então o leitor irá advinhá-lo também. E um livro previsível não nos interessa. Todavia o livro deve ser coerente. Concorde comigo - a vida quase sempre não faz sentido. Mas as pessoas não irão ler um livro que não tem enredo. E um livro sem leitores não é efetivamente um trabalho de arte. Um romance de sucesso, de qualquer tipo, deve carregar seus leitores consigo. Como é possível escrever tal livro sem um esboço? É semelhante a desenhar um labirinto. Para desenhar um labirinto precisamos de um inicio (personagens e cenário) e alguns objetivos (cenas chaves). Um bom labirinto força-o a percorrer objetivos de uma forma coerente. Quando você desenha um labirinto, você começa com um caminho, mas deixa um monte de outros caminhos por percorrer. Escrevendo um romance transrealista coerente, você inclui um certo número de acontecimentos sem explicação através de seu texto. Coisas para as quais você não sabe a razão. Mais tarde você amarra estas pontas soltas, das narrativas ramificadas. Se nenhuma ligação está disponível, você volta atrás e a reescreve (como se apagando uma parede do labirinto). Apesar de a leitura ser linear, escrever não o é.
(IDEM, pp. 1-2)


  A ideia, tão simples, é libertar-se dos maniqueísmos, abraçar as idiossincrasias da contemporaneidade e oferecer um programa de leitura e criação que sejam desafiadores, onde cada mente é capaz de oferecer uma nova realidade, uma nova interpretação, em constante abertura de significados. A leitura deveria servir como um meio à reflexão, não como uma ferramenta condicionante, parte do sistema onde o “público” inerentemente acaba retornando aos programas diários de TV e noticiários e a roda-viva de todo dia.
    Da mesma maneira, em Tocandoanu para Cantagalo, é comum que certos temas acabem por permear toda a história, assim como o comportamento das personagens: embora o Darío Vuturuá de A Volta do Umbigo, Disgramento, Macuconha e A Bela Máscara sejam essencialmente o mesmo personagem, ele difere de uma narrativa da outra quanto ao local de moradia, trabalho e, no caso da web-série Na terra dos pésjuntos, até mesmo em relação à personalidade. Por outro lado, Zacarias é sempre quase relatado como alguém obcecado por um painel de fios vermelhos onde o destino das personagens parece estar pré-estabelecido, sendo que em Disgramento o tal painel não aparece e nA Volta do Umbigo ele surja com um dos pés amputados, enquanto em Na terra dos pés juntos, Zacarias não passe de uma sombra sinistra que controla todos os eventos, que, embora nunca tenha sido mencionado nos episódios filmados, aparece em todos os roteiros.
     Ao se elucubrar sobre as personagens e seus múltiplos direcionamentos, temos de nos deter sobre a questão temporal profundamente arraigada às narrativas de Tocando anu para Cantagalo. Posto que é intenção do autor coadunar todos os eventos numa mesma linha temporal, ele tem também de lidar com as dificuldades impostas pelo próprio impulso de reescrever constantemente toda a obra – afinal, se o quadrinho A Volta do Umbigo, o conto As voltas do umbigo, o romance Disgramento e as postagens iniciadas com As metáforas do cigarro, no site Arames da Cerca, praticamente contam as mesmas histórias, elas também mostram divergências gritantes quanto aos caminhos do recém-chegado Darío Vuturuá a Macuco. Isto sem contar o conto DoppelgangerizaçãoTransdimensional de Macuco, que apresenta a possibilidade de que Darío Vuturuá e Tompinhão Coelho (um dos protagonistas de Macuconha) sejam doppelgangers.

quarta-feira, 29 de junho de 2016

Cinema Novo e Tropicalia se reencontrando em quadrinhos

   Nessa altura do campeonato, você provavelmente já se deparou com o trailer de Pássaros Artificiais... E se ainda não viu, clique aí.


     Prontinho. Já viu? Reviu? Assistiu dando pausas, tentando pegar as coisas divertidas que o Cristiano Botelho enfiou no menos de um minuto de vídeo? (Repararam no Hieronymus Bosch na janela?)
      Então, você também deve ter notado o seguinte comentário do cineasta Délio Freire:
“Em um lugar onde vários mundos se conectam após a morte de um escritor apaixonado pela literatura, somos apresentados a uma ciranda de acontecimentos e referências. Um mundo repleto de melancolia e caos em uma HQ que é original e independente. Julio Cortázar encontrando Ariano Suassuna. Cinema Novo e Tropicália se reencontrando em quadrinhos”
      Se você chegou até aqui, então já sabe que somos bastante ambiciosos com o que tratamos aqui. Não apenas com a forma, mas também com o conteúdo. Esta não é uma história fácil, tampouco o é para leitores fáceis. Queremos provocar, tocar fogo, te adoentar.
    Novamente, se você chegou até aqui, também deve ter percebido que até trilha sonora nós montamos, não é? Pois bem, duas honrosas exceções estão (?) aí: Raul Seixas e Tom Zé. Um não foi tropicalista, o outro é o legítimo, se bem que praticamente expulso no auge do movimento.
      Talvez (é bem provável que seja isso mesmo), mais do que tudo o que você viu, leu ou escutou até agora, são esses caras as grandes forças motrizes dessa incerteza de acontecimentos que movimentam a constelação de histórias e tramas que dão nó em Pássaros Artificiais.
       Discutiremos isso melhor amanhã. Por hoje, fiquem com as duas versões da página que é apresentada no trailer. Boa leitura!


sábado, 25 de junho de 2016

A Máquina de Escrever

   Seguimos com nosso ritual sabático de apresentar um personagem potencialmente desconhecido do universo de Tocando anu para Cantagalo. O desta semana, assim como da anterior, é uma das pessoas que está por trás de quase tudo até agora:


   Surgido no roteiro da HQ não desenhada A Máquina de Escrever, Pedro Conselheiro é um escritor paranóico, que passa a ser assombrado por personagens de suas histórias, cujos trechos aparecem, em recordatórios, por toda a narrativa. A história é contada através do ponto de vista do investigador paranormal Daniel Garcia, que a todo momento se divide entre a incredulidade e o mergulho nos delírios de Pedro Conselheiro. Dentre as personagens, destacavam-se a secretária, que não aparece, mas se faz presente pelos cinzeiros repletos de guimbas de cigarro que deixa para trás, a musa juvenil que atormenta os sonhos molhados do escritor e o assistente do investigador, de nome Diego, que desaparece durante uma visita no hospital.
   Presente em Disgramento (ciranda de aço com rosa), Pedro Conselheiro é o principal colaborador de Antonio Izabel na criação da Orquídea, a organização artística por trás dos eventos do livro. Pedro é a consciência por trás de todas as tramas, ganhando uma personalidade definidora a partir dos desenhos de Antonio Eder. Sua participação em Pássaros Artificiais é muito marcante, assim como os traços de Antonio.

sexta-feira, 24 de junho de 2016

A Metaficção

Onde é o lado de lá da realidade? Para onde convergem, de onde procedem os fios que tecem a trama de nossas vidas? E quem observa essa trama, fora do tempo e do espaço, entre as frestas e batidas do coração? A resposta está na Teoria da Flor de Lótus, e pelas ruas desta Macuco literária e alucinógena, desta Macuco alucinada e reflexiva, onde a realidade é desfolhada pelo sopro suave de um tempo não-linear, e as histórias que tomam forma apontam para O Que não tem forma, nem nunca terá.
Lucio Manfredi, escritor, roteirista e dramaturgo

"um lençol pendurado na parede com fios de diferentes cores se entrecruzando, vibrando-se plenipotencialmente – ele explicava a realidade quotidiana dessa forma, como um acadêmico experimentado versaria sobre física quântica e a teoria matemática do caos."
   A postagem de hoje é sobre metaficção, segunda parte do Manifesto Tocando anu para Cantagaloliteratura sobre literatura, onde, embora se saiba personagem, o autor ainda é uma figura externa, buscando na experiência narrativa mais do que a construção de um arco ficcional relevante, uma história de ecos que se traveste de completude nas migalhas do pão. E se essa opção do micro tomado pelo macro parece dotada de uma grandiloquência exacerbada, lembramos que as ambições desta empreitada não se propõem a ditar as regras, desenvolver uma linguística “definitiva” de uma geração de criadores, no que concerne à narrativa regionalista. A intenção é o picaresco, o agoniante, a recriação de uma realidade insubmissa às leis da ficção, entregando a criação de personagens a uma mutação constante;

    Como dito em postagem anterior, tudo se conecta pelos Fios de Zacarias, mas não apenas por ele.
Sei que Darío também tivera contato com o painel de Zacarias, apesar de não saber como isto o afetou. Teve gente, no passado, que viu aquilo como algo maligno. As conexões estariam dispostas em formato muito semelhante as ruas e bairro de Macuco. Um amigo, Pedro Neto, garantiu-me que chegou a identificar praças e viradores na multidão de oroboros vermelhos que pareciam infestar-se de maneira vívida pelo lençol pendurado na parede velha. Darío é um encantado pela multitude familiar e caoticamente orgânica que ele encontra nas cidades do interior, e Macuco em particular lhe traz nuances muito atrativas. Me parece que ele passa horas e horas trancado e debruçado sobre a máquina de escrever, aparentemente tentando descoerentizar as próprias histórias, implicando uma complexa rede de ações que não necessariamente se interligam, apenas existem por si próprias, alheias as vontades temporais a que se submetem certas narrativas. (...) Ele diz que o que está fazendo, o que está escrevendo, implica em converter o imaginário em algo real, esperando tocar as pessoas, recuperar suas vontades de integração e encadeamento de eventos. Algo que, ao mesmo tempo em diz buscar uma nova integração de pessoas em lugares, parece trabalhar muito melhor com a ideia romântica de se atravessar o fluxo do tempo, arregaçar as limitações naturais e botar pra foder na panela de caldo quântico do que já passou e passará.

        Visto que o presente trabalho é também uma cartografia sobre a composição e arregimentação de elementos e histórias diversas, que se entrelaçam a fatos cotidianos e observações sobre a memória recente do município de Macuco, é válido que se pare para pensar por um momento como a metaficção local pode ser utilizada pelo autor de Tocando anu para Cantagalo.
A metaficção inclui as questões da pós-modernidade conforme Jair Ferreira dos Santos, “(...) o romance deve se tornar uma imitação deliberada do romance, dos gêneros literários ou de qualquer outro texto apto a injetar-lhe sobrevida.” (SANTOS, 1995, p. 62) Para Jair, a pós-modernidade garante ainda uma metaficção, literatura sobre literatura, onde o burlesco tem um papel importante:


O burlesco, que é o exagero cômico, vai ser o tom dominante na metaficção. Uma estética jocosa, fantasista, não-modernista, do absurdo passará por ele. Gênero menor, modo temático e estilo narrativo, o burlesco, em ação na literatura inglesa desde o séc. XVII, surrupiado ao francês Scarron, é um dispositivo de paródia que faz rir pela incongruência entre o fundo e a forma (algo assim como transpor a Eneida com a linguagem virgiliana para o meio de uma família calabresa vivendo hoje no Brás). Para fazer rir, o burlesco convoca toda a baixaria: sexo, violência, drogas, loucura, perversão, escatologia – a parte maldita com a qual o pós-modernismo, sem ilusões ante a sociedade tecnológica, desanca o projeto Iluminista em sua crença na emancipação do homem pelo conhecimento e o progresso. Nessa mesma trilha, o burlesco é ainda a parte intertextual por onde os autores pós-modernos cruzam o fosso (bem modernista) entre arte culta e arte de massa: ficção científica, romance policial, conto de fadas, pornografia, western e quadrinhos são alegremente canibalizados pelos espíritos mais requintados. (IDEM, pp. 62-3)


   Vale dizer ainda que, embora se saiba personagem, o autor ainda é uma figura externa, que supostamente deveria prestar atenção a detalhes e controlar as ferramentas narrativas, tal qual nos instrui Foucault em seu ensaio O que é um autor?:


(…) A noção de autor constitui o momento forte da individualização na história das ideias, dos conhecimentos, das literaturas, na história da filosofia também, e na das ciências. Mesmo hoje, quando se faz a história de um conceito, de um género literário ou de um tipo de filosofia, creio que tais unidades continuam a ser consideradas como recortes relativamente fracos, secundários e sobrepostos em relação à unidade primeira, sólida e fundamental, que é a do autor e da obra. (FOUCAULT, 1992, p. 33)


    Se o texto aponta para o autor, se a sua relação é, em primeiro lugar, com o autor, então as personagens seriam um reflexo disso, não? Foucault (1992) antes de tudo nos lembra que a escrita, hoje, é liberta dos temas da expressão, só se referindo a si mesma, sem no entanto, se aprisionar em sua interioridade: “(...) identifica-se com a sua própria exterioridade manifesta. (…) é um jogo ordenado de signos que se deve menos ao seu conteúdo significativo do que à própria natureza do significante.” (IDEM, p. 35) O jornalista e acadêmico Antonio Olinto, ao falar sobre a obra de James Joyce, nos diz algo semelhante, alertando-nos para o fato de que


As palavras também morrem. Deixam de ser prenhes de sentido, tornam-se meros sons vazios, fofos, sem fixação no pensamento. Para Joyce, mesmo o instrumento de comunicação diárias estava tocado de decadência. Então quebrou os vidros que o envolviam, e através dos quais só via fiapos de movimentos vagos na paisagem, e criou um mundo à imagem e semelhança de sua angústia. (OLINTO, 2008, p. 61)


      “Tocando anu para cantar galo” ou apenas Cantagalo1, é expressão usada há muito para designar aqueles que encontram-se em situação de desespero, com o dinheiro curto ou simplesmente sentindo-se prejudicados de alguma forma. O anu é um pássaro preto, que, conforme se aprende na região, vive próximo a cercas e pastos onde carrapatos se proliferam. De certa forma é um pássaro de mau-agouro, seja pela sua cor, seja pela sua proximidade com os corvos, ainda que na região também seja comum a presença de anus brancos, mais atrativos esteticamente.
      Mas são os anus pretos e o mau-agouro que trazem com eles que dão o tom dessa farsa que se pretende analisar ao mesmo tempo em que é criada. Uma farsa como todas, que abre mão dos referentes, que anula o realismo e cujo autor está imerso em suas angústias.
     O romance Tocando anu para Cantagalo e as histórias que o formam abdicam em parte da realidade para a gestação de uma realidade nova, diferenciada do palpável, adotando das narrativas modernas, dos gêneros populares e das mídias que os difundem, suas principais características: serialização das tramas e construção de uma realidade calcada em um determinado número de elementos que produzam uma segurança metafórica, com a criação de uma mitologia particular, dando unidade às diversas tramas. Embora no texto pareça que há uma exclusão do “onde é que eu tô, para onde é que eu vou e de onde que eu sou?” como questões de vital importância, Jair Ferreira dos Santos nos lembra que:

A metaficção no entanto não é apenas uma fisiologia do escabroso e do bizarro nem os funerais de gêneros que se esgotaram. Contra-romance que imita o romance, ela quer ser uma nova epistemologia literária, um desmascaramento das convenções ficcionais mantidas intactas pelo próprio modernismo, e por aí, criando mundos verbais alternativos, ser um ataque à atualidade, onde, segundo Borges, é total “a contaminação da realidade pelo sonho”. (SANTOS, IDEM, p. 63)


      Ou seja, busca-se na experiência narrativa muito mais do que uma construção de um arco ficcional relevante. É uma história de ecos que se traveste de completude nas migalhas do pão (se é que podemos fazer uma alusão a Proust nesse ínterim). E se essa opção pelo micro tomado pelo macro parece dotada de uma grandiloqüência exagerada, lembramos que as ambições deste projeto não visam o desenvolvimento lingüístico “definitivo” desta geração no que concerne à narrativa regionalista. Longe de tal ousadia. A intenção é recriar a realidade com um certo ar picaresco.


Nessa mesma trilha, o burlesco é ainda a ponte intertextual por onde os autores pós-modernos cruzam o fosso (bem modernista) entre arte culta e arte de massa: ficção científica, romance policial, conto de fadas, pornografia, western e quadrinhos são alegremente canibalizados pelos espíritos requintados. (SANTOS, IBIDEM IDEM, p. 63)


         E como recriar uma realidade que não se submete mais às leis da ficção, quando as ferramentas narrativas várias que se apresentam na contemporaneidade, praticamente todas se servem e bebem exaustivamente de uma revolução generalizada, provocada pela literatura jovem dos beats? Pois, mesmo que efetuado há mais de cinqüenta anos, o movimento, hoje não tão jovem, ironicamente permanece longe de ser careta. Como se atrever à criação de um universo reflexivo e vivo da pulsante e infinitamente criativa (e ao mesmo tempo quadrada, retrograda) sociedade contemporânea?
John Bart diz que a literatura dos últimos cinqüenta anos passou por dois processos distintos e, inerentemente, iguais. Em 1967, no ensaio A Literatura do Esgotamento, declarou que a busca por uma ruptura do pensamento dentro das linhas tradicionais era uma rebeldia que se entregava à auto-devoração, metaficção por auto-conhecimento (o texto consciente de si mesmo). Curiosamente, enquanto Barth diferenciava o romance realista (sobre o mundo que é), o romance modernista (sobre o mundo que poderia ser) e o romance pós-moderno (sobre mundos que não podem ser, que se contradizem), Gabriel García Márquez despeja sobre o mundo o multitudinário Cem Anos de Solidão, que alimenta personagens de contos e novelas anteriores, além de municiar o autor com cenários que viriam a ser aproveitados futuramente em sua própria obra. Sobre isto, diz Mario Vargas Llosa:

Dificilmente poderia fazer, uma ficção posterior a Cem Anos de Solidão, o que esta novela faz com os contos e novelas precedentes: reduzi-los a condição de anúncios, de partes de uma totalidade. Cem Anos de Solidão é essa totalidade que absorve retroativamente os estágios anteriores da realidade crítica, acrescentando novo material e edificando uma realidade com um princípio e um fim no espaço-tempo: como poderia ser modificado ou repetido o mundo que esta ficção destrói depois de completar? Cem Anos de Solidão é uma novela total, na linha dessas criações absolutamente ambiciosas que competem com a realidade real de igual para igual, entregando uma imagem de vitalidade, vastidão e complexidade qualitativamente equivalentes. (LLOSA, Mario Vargas, 2007, p. XXV)2


Treze anos depois, Barth voltaria ao tema com o artigo A Literatura da plenitude, onde ele revela ter repensado a questão, observando que a literatura pós-moderna deve esvaziar-se da necessidade de figurar em alguma escola ou listagem, assim como não é necessariamente um desenvolvimento do projeto modernista, porém descartando o sentido da criação como algo sublime, deixando a visão romântica de lado em prol de uma literatura que não imita nem repudia seus genitores. Ele recusa a necessidade de uma literatura que se soerga a uma sobrevida baseada na quantidade de textos analíticos que acompanhem o leitor durante a jornada empreendida na leitura. “Ninguém precisa mais de outros Finnegans Wake acompanhados de suas equipes de professores dedicados a explicá-los” (BARTH apud SANTOS, 1995), disse Barth, que também elogiou o Cem Anos de Solidão de García Márquez como uma literatura deliciosa, “rica em proteínas” (IDEM).

Se os modernistas, erguendo a tocha dos românticos, nos ensinaram que a linearidade, racionalidade, consciência, causa e efeito, ilusionismo ingênuo, linguagem transparente, anedota inocente e convenções morais de classe média não são toda a história, então, segundo a perspectiva das últimas décadas do nosso século, poderíamos admitir que o contrário de todas essas coisas também não são toda a história. Disjunção, simultaneidade, irracionalidade, anti-ilusionismo, anti-reflexão, o-meio-como-mensagem, olimpianismo político, a idéia do artista como herói e um pluralismo moral que beira a entropia tampouco são toda a história.” (IDEM)


É uma maneira de se estabelecer conexão com uma realidade literária fictícia em andamento com base em narrativas contemporâneas.
         Seus próprios dramas, no entanto, geram a auto-sustentação e constante revigoração pela grande variedade de frentes midiaticas às quais as personagens são expostas. Assim como intentamos fazer aqui com os diversos caminhos narrativos de Tocando anu para Cantagalo.
       Então, se há alguma temeridade no que se refere à construção das personagens, antes há essas outras, mais imediatas, onde a linguagem e as propostas às quais o autor se entrega, devem ser trabalhadas e pensadas como objetos em mutação constante. Afinal, Tocando anu para Cantagalo é obra em progresso iniciada em 2002, treze anos, uma adolescência e um começo de vida adulta atrás, donde se conclui que o autor aqui entregue a esta cartografia muito viveu e, aos olhos dele, até penou, riu, amou e sobreviveu. Assim, suas influências, gostos e deliberações se modificaram o bastante para justificar as transformações as quais se submeteram também as personagens.

1 Cidade natal de Euclides da Cunha e do autor deste texto.
2 Difícilmente podría hacer uma ficción posterior con Cien años de soledad lo que esta novela hace com los cuentos y novelas precedentes: reducirlos a la condición de anúncios, de partes de uma totalidad. Cien años de soledad es esa totalidad que absorbe retroactivamente los estádios anteriores de realidad ficticia, y, añadiéndoles nuevos materiales, edifica una realidad con un principio y un fin en el espacio y en el tiempo: ¿cómo podría ser modificado o repetido el mundo que esta ficcíon destruye después de completar? Cien años de soledade es una novela total, en la línea de esas creaciones demencialmente ambiciosas que compitem con la realidad real de igual a igual, enfrentándose una imagen de una vitalidad, vastedad y complejidad cualitativamente equivalentes. (tradução minha)