sexta-feira, 1 de julho de 2016

O Transrealismo

    Se você já se deparou com o Manifesto Tocando anu para Cantagalo, é provável que tenha percebido que um de seus itens faz menção a um outro manifesto, o Transrealista. Queporréssa?, você se pergunta.
    Bem, desenvolvido pelo matemático e autor de ficção científica Rudy Rucker, o Manifesto Transrealista propõe um tipo de ficção onde personagens não se submetem aos caprichos de seus autores. A ideia, basicamente tão simples, é libertar-se dos maniqueísmos, abraçar idiossincrasias da contemporaneidade e oferecer um programa de leitura e criação que sejam desafiadores, onde cada mente é capaz de oferecer uma nova realidade e interpretação, com uma constante abertura de significados. A leitura deve servir como um meio à reflexão, não como uma ferramenta condicionante e alienante do universo proposto pelo autor.

Página inédita! :)
     Quando escreveu o Manifesto Transrealista Rudy Rucker era docente na Ruprecht-Karls-Universität Heidelberg, na Alemanha, e publicado no Boletim nº 82 da Science Fiction & Fantasy Writers of America. Nele, Rucker propunha um tipo de ficção onde as personagens não se submetem simplesmente aos caprichos do autor, onde “as ações se tornam previsíveis e no diálogo é difícil dizer qual personagem supostamente está falando. Na vida real, as pessoas que você encontra, quase nunca dizem aquilo que você espera que elas digam.” (RUCKER, 1980, p. 1) O manifesto transrealista busca uma expressão literária que hoje pode nos parecer comum, mas que ainda carece de explicações em certos meios:


Em um romance transrealista, o autor freqüentemente aparece como personagem, ou a sua personalidade está dividida entre vários personagens. Dizendo assim parece até egoísta. Mas posso argumentar que usar a si mesmo como personagem não é egoísmo de verdade. É simplesmente uma necessidade. Se, de fato, você está escrevendo sobre percepções imediatas, então que outro ponto de vista senão o seu é possível?
É bem mais egoístico utilizar uma versão idealizada de si mesmo, fantasiando-a, e tendo este 'para-você' desabafando a sua vontade através de embalagens flexíveis escravas. O protagonista transrealista não é apresentado como um tipo de super-herói. O protagonista transrealista é um neurótico inútil, como nós mesmos sabemos ser.
O artista transrealista não pode predizer a forma final de seu trabalho.
O romance transrealista cresce organicamente, como se tivesse vida própria. O autor pode apenas escolher personagens e cenários, introduzir este ou aquele elemento fantástico e direcionar para certas cenas chaves. Em condições ideais, o romance transrealista é escrito na obscuridade, sem uma linha geral ou esboço. Se o autor sabe precisamente como seu livro irá se desenvolver, então o leitor irá advinhá-lo também. E um livro previsível não nos interessa. Todavia o livro deve ser coerente. Concorde comigo - a vida quase sempre não faz sentido. Mas as pessoas não irão ler um livro que não tem enredo. E um livro sem leitores não é efetivamente um trabalho de arte. Um romance de sucesso, de qualquer tipo, deve carregar seus leitores consigo. Como é possível escrever tal livro sem um esboço? É semelhante a desenhar um labirinto. Para desenhar um labirinto precisamos de um inicio (personagens e cenário) e alguns objetivos (cenas chaves). Um bom labirinto força-o a percorrer objetivos de uma forma coerente. Quando você desenha um labirinto, você começa com um caminho, mas deixa um monte de outros caminhos por percorrer. Escrevendo um romance transrealista coerente, você inclui um certo número de acontecimentos sem explicação através de seu texto. Coisas para as quais você não sabe a razão. Mais tarde você amarra estas pontas soltas, das narrativas ramificadas. Se nenhuma ligação está disponível, você volta atrás e a reescreve (como se apagando uma parede do labirinto). Apesar de a leitura ser linear, escrever não o é.
(IDEM, pp. 1-2)


  A ideia, tão simples, é libertar-se dos maniqueísmos, abraçar as idiossincrasias da contemporaneidade e oferecer um programa de leitura e criação que sejam desafiadores, onde cada mente é capaz de oferecer uma nova realidade, uma nova interpretação, em constante abertura de significados. A leitura deveria servir como um meio à reflexão, não como uma ferramenta condicionante, parte do sistema onde o “público” inerentemente acaba retornando aos programas diários de TV e noticiários e a roda-viva de todo dia.
    Da mesma maneira, em Tocandoanu para Cantagalo, é comum que certos temas acabem por permear toda a história, assim como o comportamento das personagens: embora o Darío Vuturuá de A Volta do Umbigo, Disgramento, Macuconha e A Bela Máscara sejam essencialmente o mesmo personagem, ele difere de uma narrativa da outra quanto ao local de moradia, trabalho e, no caso da web-série Na terra dos pésjuntos, até mesmo em relação à personalidade. Por outro lado, Zacarias é sempre quase relatado como alguém obcecado por um painel de fios vermelhos onde o destino das personagens parece estar pré-estabelecido, sendo que em Disgramento o tal painel não aparece e nA Volta do Umbigo ele surja com um dos pés amputados, enquanto em Na terra dos pés juntos, Zacarias não passe de uma sombra sinistra que controla todos os eventos, que, embora nunca tenha sido mencionado nos episódios filmados, aparece em todos os roteiros.
     Ao se elucubrar sobre as personagens e seus múltiplos direcionamentos, temos de nos deter sobre a questão temporal profundamente arraigada às narrativas de Tocando anu para Cantagalo. Posto que é intenção do autor coadunar todos os eventos numa mesma linha temporal, ele tem também de lidar com as dificuldades impostas pelo próprio impulso de reescrever constantemente toda a obra – afinal, se o quadrinho A Volta do Umbigo, o conto As voltas do umbigo, o romance Disgramento e as postagens iniciadas com As metáforas do cigarro, no site Arames da Cerca, praticamente contam as mesmas histórias, elas também mostram divergências gritantes quanto aos caminhos do recém-chegado Darío Vuturuá a Macuco. Isto sem contar o conto DoppelgangerizaçãoTransdimensional de Macuco, que apresenta a possibilidade de que Darío Vuturuá e Tompinhão Coelho (um dos protagonistas de Macuconha) sejam doppelgangers.

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