Se você já se deparou com o Manifesto Tocando anu para Cantagalo, é provável que tenha percebido que um de seus itens faz menção a um outro manifesto, o Transrealista. Queporréssa?, você se pergunta.
Bem, desenvolvido
pelo matemático e autor de ficção científica Rudy Rucker, o
Manifesto Transrealista
propõe um tipo de ficção onde personagens não se submetem aos
caprichos de seus autores. A ideia, basicamente tão simples, é
libertar-se dos maniqueísmos, abraçar idiossincrasias da
contemporaneidade e oferecer um programa de leitura e criação que
sejam desafiadores, onde cada mente é capaz de oferecer uma nova
realidade e interpretação, com uma constante abertura de
significados. A leitura deve servir como um meio à reflexão, não
como uma ferramenta condicionante e
alienante do universo proposto pelo autor.
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Página inédita! :) |
Quando escreveu o Manifesto Transrealista Rudy Rucker era docente na Ruprecht-Karls-Universität Heidelberg, na Alemanha, e publicado
no Boletim nº 82 da Science
Fiction & Fantasy Writers of America. Nele,
Rucker propunha um tipo de ficção onde as personagens não se
submetem simplesmente aos caprichos do autor, onde “as ações se
tornam previsíveis e no diálogo é difícil dizer qual personagem
supostamente está falando. Na vida real, as pessoas que você
encontra, quase nunca dizem aquilo que você espera que elas digam.”
(RUCKER, 1980, p. 1) O manifesto transrealista busca uma expressão
literária que hoje pode nos parecer comum, mas que ainda carece de
explicações em certos meios:
Em
um romance transrealista, o autor freqüentemente aparece como
personagem, ou a sua personalidade está dividida entre vários
personagens. Dizendo assim parece até egoísta. Mas posso argumentar
que usar a si mesmo como personagem não é egoísmo de verdade. É
simplesmente uma necessidade. Se, de fato, você está escrevendo
sobre percepções imediatas, então que outro ponto de vista senão
o seu é possível?
É bem mais egoístico utilizar uma versão idealizada de si mesmo, fantasiando-a, e tendo este 'para-você' desabafando a sua vontade através de embalagens flexíveis escravas. O protagonista transrealista não é apresentado como um tipo de super-herói. O protagonista transrealista é um neurótico inútil, como nós mesmos sabemos ser.
É bem mais egoístico utilizar uma versão idealizada de si mesmo, fantasiando-a, e tendo este 'para-você' desabafando a sua vontade através de embalagens flexíveis escravas. O protagonista transrealista não é apresentado como um tipo de super-herói. O protagonista transrealista é um neurótico inútil, como nós mesmos sabemos ser.
O
artista transrealista não pode predizer a forma final de seu
trabalho.
O romance transrealista cresce organicamente, como se tivesse vida própria. O autor pode apenas escolher personagens e cenários, introduzir este ou aquele elemento fantástico e direcionar para certas cenas chaves. Em condições ideais, o romance transrealista é escrito na obscuridade, sem uma linha geral ou esboço. Se o autor sabe precisamente como seu livro irá se desenvolver, então o leitor irá advinhá-lo também. E um livro previsível não nos interessa. Todavia o livro deve ser coerente. Concorde comigo - a vida quase sempre não faz sentido. Mas as pessoas não irão ler um livro que não tem enredo. E um livro sem leitores não é efetivamente um trabalho de arte. Um romance de sucesso, de qualquer tipo, deve carregar seus leitores consigo. Como é possível escrever tal livro sem um esboço? É semelhante a desenhar um labirinto. Para desenhar um labirinto precisamos de um inicio (personagens e cenário) e alguns objetivos (cenas chaves). Um bom labirinto força-o a percorrer objetivos de uma forma coerente. Quando você desenha um labirinto, você começa com um caminho, mas deixa um monte de outros caminhos por percorrer. Escrevendo um romance transrealista coerente, você inclui um certo número de acontecimentos sem explicação através de seu texto. Coisas para as quais você não sabe a razão. Mais tarde você amarra estas pontas soltas, das narrativas ramificadas. Se nenhuma ligação está disponível, você volta atrás e a reescreve (como se apagando uma parede do labirinto). Apesar de a leitura ser linear, escrever não o é. (IDEM, pp. 1-2)
O romance transrealista cresce organicamente, como se tivesse vida própria. O autor pode apenas escolher personagens e cenários, introduzir este ou aquele elemento fantástico e direcionar para certas cenas chaves. Em condições ideais, o romance transrealista é escrito na obscuridade, sem uma linha geral ou esboço. Se o autor sabe precisamente como seu livro irá se desenvolver, então o leitor irá advinhá-lo também. E um livro previsível não nos interessa. Todavia o livro deve ser coerente. Concorde comigo - a vida quase sempre não faz sentido. Mas as pessoas não irão ler um livro que não tem enredo. E um livro sem leitores não é efetivamente um trabalho de arte. Um romance de sucesso, de qualquer tipo, deve carregar seus leitores consigo. Como é possível escrever tal livro sem um esboço? É semelhante a desenhar um labirinto. Para desenhar um labirinto precisamos de um inicio (personagens e cenário) e alguns objetivos (cenas chaves). Um bom labirinto força-o a percorrer objetivos de uma forma coerente. Quando você desenha um labirinto, você começa com um caminho, mas deixa um monte de outros caminhos por percorrer. Escrevendo um romance transrealista coerente, você inclui um certo número de acontecimentos sem explicação através de seu texto. Coisas para as quais você não sabe a razão. Mais tarde você amarra estas pontas soltas, das narrativas ramificadas. Se nenhuma ligação está disponível, você volta atrás e a reescreve (como se apagando uma parede do labirinto). Apesar de a leitura ser linear, escrever não o é. (IDEM, pp. 1-2)
A ideia, tão simples, é
libertar-se dos maniqueísmos, abraçar as idiossincrasias da
contemporaneidade e oferecer um programa de leitura e criação que
sejam desafiadores, onde cada mente é capaz de oferecer uma nova
realidade, uma nova interpretação, em constante abertura de
significados. A leitura deveria servir como um meio à reflexão, não
como uma ferramenta condicionante, parte do sistema onde o “público”
inerentemente acaba retornando aos programas diários de TV e
noticiários e a roda-viva de todo dia.
Da
mesma maneira, em Tocandoanu para Cantagalo, é
comum que certos temas acabem por permear toda a história, assim
como o comportamento das personagens: embora o Darío Vuturuá de A Volta do Umbigo, Disgramento,
Macuconha e
A Bela Máscara
sejam essencialmente o mesmo personagem, ele difere de uma narrativa
da outra quanto ao local de moradia, trabalho e, no caso da web-série
Na terra dos pésjuntos, até mesmo em
relação à personalidade. Por outro lado, Zacarias é sempre quase
relatado como alguém obcecado por um painel de fios vermelhos onde o
destino das personagens parece estar pré-estabelecido, sendo que em
Disgramento
o tal painel não aparece e nA
Volta do Umbigo ele
surja com um dos pés amputados, enquanto em Na
terra dos pés juntos,
Zacarias não passe de uma sombra sinistra que controla todos os
eventos, que, embora nunca tenha sido mencionado nos episódios
filmados, aparece em todos os roteiros.
Ao
se elucubrar sobre as personagens e seus múltiplos direcionamentos,
temos de nos deter sobre a questão temporal profundamente arraigada
às narrativas de Tocando
anu para Cantagalo.
Posto que é intenção do autor coadunar todos os eventos numa mesma
linha temporal, ele tem também de lidar com as dificuldades impostas
pelo próprio impulso de reescrever constantemente toda a obra –
afinal, se o quadrinho A
Volta do Umbigo,
o conto As
voltas do umbigo,
o romance Disgramento
e as postagens iniciadas com As
metáforas do cigarro,
no site Arames da Cerca, praticamente contam as mesmas histórias,
elas também mostram divergências gritantes quanto aos caminhos do
recém-chegado Darío Vuturuá a Macuco. Isto sem contar o conto
DoppelgangerizaçãoTransdimensional de Macuco,
que apresenta a possibilidade de que Darío Vuturuá e Tompinhão
Coelho (um dos protagonistas de Macuconha)
sejam doppelgangers.
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