Onde
é o lado de lá da realidade? Para onde convergem, de onde procedem
os fios que tecem a trama de nossas vidas? E quem observa essa trama,
fora do tempo e do espaço, entre as frestas e batidas do coração?
A resposta está na Teoria da Flor de Lótus, e pelas ruas desta
Macuco literária e alucinógena, desta Macuco alucinada e reflexiva,
onde a realidade é desfolhada pelo sopro suave de um tempo
não-linear, e as histórias que tomam forma apontam para O Que não
tem forma, nem nunca terá.
Lucio Manfredi, escritor, roteirista e dramaturgo
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"um
lençol pendurado na parede com fios de diferentes cores se
entrecruzando, vibrando-se plenipotencialmente – ele explicava a
realidade quotidiana dessa forma, como um acadêmico experimentado
versaria sobre física quântica e a teoria matemática do caos."
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A postagem de hoje é sobre metaficção, segunda parte do Manifesto Tocando anu para Cantagalo: literatura
sobre literatura, onde, embora se saiba personagem, o autor ainda é
uma figura externa, buscando na experiência narrativa mais do que a
construção de um arco ficcional relevante, uma história de ecos
que se traveste de completude nas migalhas do pão. E se essa opção
do micro tomado pelo macro parece dotada de uma grandiloquência
exacerbada, lembramos que as ambições desta empreitada não se
propõem a ditar
as regras, desenvolver uma linguística
“definitiva”
de uma geração de
criadores,
no que concerne à narrativa regionalista. A intenção é o
picaresco, o
agoniante,
a recriação de uma realidade insubmissa às leis da ficção,
entregando a criação de personagens a uma mutação constante;
Sei que Darío também tivera contato com o painel de Zacarias, apesar de não saber como isto o afetou. Teve gente, no passado, que viu aquilo como algo maligno. As conexões estariam dispostas em formato muito semelhante as ruas e bairro de Macuco. Um amigo, Pedro Neto, garantiu-me que chegou a identificar praças e viradores na multidão de oroboros vermelhos que pareciam infestar-se de maneira vívida pelo lençol pendurado na parede velha. Darío é um encantado pela multitude familiar e caoticamente orgânica que ele encontra nas cidades do interior, e Macuco em particular lhe traz nuances muito atrativas. Me parece que ele passa horas e horas trancado e debruçado sobre a máquina de escrever, aparentemente tentando descoerentizar as próprias histórias, implicando uma complexa rede de ações que não necessariamente se interligam, apenas existem por si próprias, alheias as vontades temporais a que se submetem certas narrativas. (...) Ele diz que o que está fazendo, o que está escrevendo, implica em converter o imaginário em algo real, esperando tocar as pessoas, recuperar suas vontades de integração e encadeamento de eventos. Algo que, ao mesmo tempo em diz buscar uma nova integração de pessoas em lugares, parece trabalhar muito melhor com a ideia romântica de se atravessar o fluxo do tempo, arregaçar as limitações naturais e botar pra foder na panela de caldo quântico do que já passou e passará.
Visto que o presente trabalho é
também uma cartografia sobre a composição e arregimentação de
elementos e histórias diversas, que se entrelaçam a fatos
cotidianos e observações sobre a memória recente do município de
Macuco, é válido que se pare para pensar por um momento como a
metaficção local pode ser utilizada pelo autor de Tocando anu para
Cantagalo.
A
metaficção inclui as questões da pós-modernidade conforme Jair
Ferreira dos Santos, “(...) o
romance deve se tornar uma imitação deliberada do romance, dos
gêneros literários ou de qualquer outro texto apto a injetar-lhe
sobrevida.” (SANTOS,
1995, p. 62) Para Jair, a pós-modernidade garante ainda uma
metaficção, literatura sobre literatura, onde o burlesco tem um
papel importante:
O
burlesco, que é o exagero cômico, vai ser o tom dominante na
metaficção. Uma estética jocosa, fantasista, não-modernista, do
absurdo passará por ele. Gênero menor, modo temático e estilo
narrativo, o burlesco, em ação na literatura inglesa desde o séc.
XVII, surrupiado ao francês Scarron, é um dispositivo de paródia
que faz rir pela incongruência entre o fundo e a forma (algo assim
como transpor a Eneida com a linguagem virgiliana para o meio de uma
família calabresa vivendo hoje no Brás). Para fazer rir, o burlesco
convoca toda a baixaria: sexo, violência, drogas, loucura,
perversão, escatologia – a parte maldita com a qual o
pós-modernismo, sem ilusões ante a sociedade tecnológica, desanca
o projeto Iluminista em sua crença na emancipação do homem pelo
conhecimento e o progresso. Nessa mesma trilha, o burlesco é ainda a
parte intertextual por onde os autores pós-modernos cruzam o fosso
(bem modernista) entre arte culta e arte de massa: ficção
científica, romance policial, conto de fadas, pornografia, western e
quadrinhos são alegremente canibalizados pelos espíritos mais
requintados. (IDEM, pp. 62-3)
Vale
dizer ainda que, embora se saiba personagem, o autor ainda é uma
figura externa, que supostamente deveria prestar atenção a detalhes
e controlar as ferramentas narrativas, tal qual nos instrui Foucault
em seu ensaio O que é
um autor?:
(…)
A noção de autor constitui o momento forte da individualização na
história das ideias, dos conhecimentos, das literaturas, na história
da filosofia também, e na das ciências. Mesmo hoje, quando se faz a
história de um conceito, de um género literário ou de um tipo de
filosofia, creio que tais unidades continuam a ser consideradas como
recortes relativamente fracos, secundários e sobrepostos em relação
à unidade primeira, sólida e fundamental, que é a do autor e da
obra. (FOUCAULT, 1992, p. 33)
Se
o texto aponta para o autor, se a sua relação é, em primeiro
lugar, com o autor, então as personagens seriam um reflexo disso,
não? Foucault (1992) antes de tudo nos lembra que a escrita, hoje, é
liberta dos temas da expressão, só se referindo a si mesma, sem no
entanto, se aprisionar em sua interioridade: “(...) identifica-se
com a sua própria exterioridade manifesta. (…) é um jogo ordenado
de signos que se deve menos ao seu conteúdo significativo do que à
própria natureza do significante.” (IDEM, p. 35) O jornalista e
acadêmico Antonio Olinto, ao falar sobre a obra de James Joyce, nos
diz algo semelhante, alertando-nos para o fato de que
As
palavras também morrem. Deixam de ser prenhes de sentido, tornam-se
meros sons vazios, fofos, sem fixação no pensamento. Para Joyce,
mesmo o instrumento de comunicação diárias estava tocado de
decadência. Então quebrou os vidros que o envolviam, e através dos
quais só via fiapos de movimentos vagos na paisagem, e criou um
mundo à imagem e semelhança de sua angústia. (OLINTO, 2008, p. 61)
“Tocando
anu para cantar galo”
ou apenas Cantagalo,
é expressão usada há muito para designar aqueles que encontram-se
em situação de desespero, com o dinheiro curto ou simplesmente
sentindo-se prejudicados de alguma forma. O anu é um pássaro preto,
que, conforme se aprende na região, vive próximo a cercas e pastos
onde carrapatos se proliferam. De certa forma é um pássaro de
mau-agouro, seja pela sua cor, seja pela sua proximidade com os
corvos, ainda que na região também seja comum a presença de anus
brancos, mais atrativos esteticamente.
Mas
são os anus pretos e o mau-agouro que trazem com eles que dão o tom
dessa farsa que se pretende analisar ao mesmo tempo em que é criada.
Uma farsa como todas, que abre mão dos referentes, que anula o
realismo e cujo autor está imerso em suas angústias.
O
romance Tocando anu para Cantagalo e as histórias que o formam
abdicam em parte da realidade para a gestação de uma realidade
nova, diferenciada do palpável, adotando das narrativas modernas,
dos gêneros populares e das mídias que os difundem, suas principais
características: serialização das tramas e construção de uma
realidade calcada em um determinado número de elementos que produzam
uma segurança metafórica, com a criação de uma mitologia
particular, dando unidade às diversas tramas. Embora no texto pareça
que há uma exclusão do “onde é que eu tô, para onde é que eu
vou e de onde que eu sou?” como questões de vital importância,
Jair Ferreira dos Santos nos lembra que:
A
metaficção no entanto não é apenas uma fisiologia do escabroso e
do bizarro nem os funerais de gêneros que se esgotaram.
Contra-romance que imita o romance, ela quer ser uma nova
epistemologia literária, um desmascaramento das convenções
ficcionais mantidas intactas pelo próprio modernismo, e por aí,
criando mundos verbais alternativos, ser um ataque à atualidade,
onde, segundo Borges, é total “a contaminação da realidade pelo
sonho”. (SANTOS, IDEM, p. 63)
Ou
seja, busca-se na experiência narrativa muito mais do que uma
construção de um arco ficcional relevante. É uma história de ecos
que se traveste de completude nas migalhas do pão (se é que podemos
fazer uma alusão a Proust nesse ínterim). E se essa opção pelo
micro tomado pelo macro parece dotada de uma grandiloqüência
exagerada, lembramos que as ambições deste projeto não visam o
desenvolvimento lingüístico “definitivo” desta geração no que
concerne à narrativa regionalista. Longe de tal ousadia. A intenção
é recriar a realidade com um certo ar picaresco.
Nessa
mesma trilha, o burlesco é ainda a ponte intertextual por onde os
autores pós-modernos cruzam o fosso (bem modernista) entre arte
culta e arte de massa: ficção científica, romance policial, conto
de fadas, pornografia, western e quadrinhos são alegremente
canibalizados pelos espíritos requintados. (SANTOS, IBIDEM IDEM, p.
63)
E
como recriar uma realidade que não se submete mais às leis da
ficção, quando as ferramentas narrativas várias que se apresentam
na contemporaneidade, praticamente todas se servem e bebem
exaustivamente de uma revolução generalizada, provocada pela
literatura jovem dos beats?
Pois, mesmo que efetuado há mais de cinqüenta anos, o movimento,
hoje não tão jovem, ironicamente permanece longe de ser careta.
Como se atrever à criação de um universo reflexivo e vivo da
pulsante e infinitamente criativa (e ao mesmo tempo quadrada,
retrograda) sociedade contemporânea?
John
Bart diz que a literatura dos últimos cinqüenta anos passou por
dois processos distintos e, inerentemente, iguais. Em 1967, no ensaio
A Literatura do
Esgotamento, declarou
que a busca por uma ruptura do pensamento dentro das linhas
tradicionais era uma rebeldia que se entregava à auto-devoração,
metaficção por auto-conhecimento (o texto consciente de si mesmo).
Curiosamente, enquanto Barth diferenciava o romance realista (sobre o
mundo que é), o romance modernista (sobre o mundo que poderia ser) e
o romance pós-moderno (sobre mundos que não podem ser, que se
contradizem), Gabriel García Márquez despeja sobre o mundo o
multitudinário Cem Anos de Solidão, que alimenta personagens de
contos e novelas anteriores, além de municiar o autor com cenários
que viriam a ser aproveitados futuramente em sua própria obra. Sobre
isto, diz Mario Vargas Llosa:
Dificilmente
poderia fazer, uma ficção posterior a Cem Anos de Solidão, o que
esta novela faz com os contos e novelas precedentes: reduzi-los a
condição de anúncios, de partes de uma totalidade. Cem Anos de
Solidão é essa totalidade que absorve retroativamente os estágios
anteriores da realidade crítica, acrescentando novo material e
edificando uma realidade com um princípio e um fim no espaço-tempo:
como poderia ser modificado ou repetido o mundo que esta ficção
destrói depois de completar? Cem Anos de Solidão é uma novela
total, na linha dessas criações absolutamente ambiciosas que
competem com a realidade real de igual para igual, entregando uma
imagem de vitalidade, vastidão e complexidade qualitativamente
equivalentes. (LLOSA, Mario Vargas, 2007, p. XXV)
Treze
anos depois, Barth voltaria ao tema com o artigo A
Literatura da plenitude,
onde ele revela ter repensado a questão, observando que a literatura
pós-moderna deve esvaziar-se da necessidade de figurar em alguma
escola ou listagem, assim como não é necessariamente um
desenvolvimento do projeto modernista, porém descartando o sentido
da criação como algo sublime, deixando a visão romântica de lado
em prol de uma literatura que não imita nem repudia seus genitores.
Ele recusa a necessidade de uma literatura que se soerga a uma
sobrevida baseada na quantidade de textos analíticos que acompanhem
o leitor durante a jornada empreendida na leitura. “Ninguém
precisa mais de outros Finnegans
Wake acompanhados de
suas equipes de professores dedicados a explicá-los” (BARTH apud
SANTOS, 1995), disse Barth, que também elogiou o Cem
Anos de Solidão de
García Márquez como uma literatura deliciosa, “rica em proteínas”
(IDEM).
Se
os modernistas, erguendo a tocha dos românticos, nos ensinaram que a
linearidade, racionalidade, consciência, causa e efeito, ilusionismo
ingênuo, linguagem transparente, anedota inocente e convenções
morais de classe média não são toda a história, então, segundo a
perspectiva das últimas décadas do nosso século, poderíamos
admitir que o contrário de todas essas coisas também não são toda
a história. Disjunção, simultaneidade, irracionalidade,
anti-ilusionismo, anti-reflexão, o-meio-como-mensagem, olimpianismo
político, a idéia do artista como herói e um pluralismo moral que
beira a entropia tampouco são toda a história.” (IDEM)
É uma maneira de se estabelecer
conexão com uma realidade literária fictícia em andamento com base
em narrativas contemporâneas.
Seus
próprios dramas, no entanto, geram a auto-sustentação e constante
revigoração pela grande variedade de frentes midiaticas às quais
as personagens são expostas. Assim como intentamos fazer aqui com os
diversos caminhos narrativos de Tocando
anu para Cantagalo.
Então,
se há alguma temeridade no que se refere à construção das
personagens, antes há essas outras, mais imediatas, onde a linguagem
e as propostas às quais o autor se entrega, devem ser trabalhadas e
pensadas como objetos em mutação constante. Afinal, Tocando
anu para Cantagalo é
obra em progresso iniciada em 2002, treze anos, uma adolescência e
um começo de vida adulta atrás, donde se conclui que o autor aqui
entregue a esta cartografia muito viveu e, aos olhos dele, até
penou, riu, amou e sobreviveu. Assim, suas influências, gostos e
deliberações se modificaram o bastante para justificar as
transformações as quais se submeteram também as personagens.
Difícilmente
podría hacer uma ficción posterior con Cien
años de soledad
lo que esta novela hace com los cuentos y novelas precedentes:
reducirlos a la condición de anúncios, de partes de uma totalidad.
Cien
años de soledad
es esa totalidad que absorbe retroactivamente los estádios
anteriores de realidad ficticia, y, añadiéndoles nuevos
materiales, edifica una realidad con un principio y un fin en el
espacio y en el tiempo: ¿cómo podría ser modificado o repetido el
mundo que esta ficcíon destruye después de completar? Cien
años de soledade es
una novela total, en la línea de esas creaciones demencialmente
ambiciosas que compitem con la realidad real de igual a igual,
enfrentándose una imagen de una vitalidad, vastedad y complejidad
cualitativamente equivalentes. (tradução
minha)