quarta-feira, 20 de julho de 2016
sexta-feira, 1 de julho de 2016
O Transrealismo
Se você já se deparou com o Manifesto Tocando anu para Cantagalo, é provável que tenha percebido que um de seus itens faz menção a um outro manifesto, o Transrealista. Queporréssa?, você se pergunta.
Bem, desenvolvido
pelo matemático e autor de ficção científica Rudy Rucker, o
Manifesto Transrealista
propõe um tipo de ficção onde personagens não se submetem aos
caprichos de seus autores. A ideia, basicamente tão simples, é
libertar-se dos maniqueísmos, abraçar idiossincrasias da
contemporaneidade e oferecer um programa de leitura e criação que
sejam desafiadores, onde cada mente é capaz de oferecer uma nova
realidade e interpretação, com uma constante abertura de
significados. A leitura deve servir como um meio à reflexão, não
como uma ferramenta condicionante e
alienante do universo proposto pelo autor.
Página inédita! :) |
Quando escreveu o Manifesto Transrealista Rudy Rucker era docente na Ruprecht-Karls-Universität Heidelberg, na Alemanha, e publicado
no Boletim nº 82 da Science
Fiction & Fantasy Writers of America. Nele,
Rucker propunha um tipo de ficção onde as personagens não se
submetem simplesmente aos caprichos do autor, onde “as ações se
tornam previsíveis e no diálogo é difícil dizer qual personagem
supostamente está falando. Na vida real, as pessoas que você
encontra, quase nunca dizem aquilo que você espera que elas digam.”
(RUCKER, 1980, p. 1) O manifesto transrealista busca uma expressão
literária que hoje pode nos parecer comum, mas que ainda carece de
explicações em certos meios:
Em
um romance transrealista, o autor freqüentemente aparece como
personagem, ou a sua personalidade está dividida entre vários
personagens. Dizendo assim parece até egoísta. Mas posso argumentar
que usar a si mesmo como personagem não é egoísmo de verdade. É
simplesmente uma necessidade. Se, de fato, você está escrevendo
sobre percepções imediatas, então que outro ponto de vista senão
o seu é possível?
É bem mais egoístico utilizar uma versão idealizada de si mesmo, fantasiando-a, e tendo este 'para-você' desabafando a sua vontade através de embalagens flexíveis escravas. O protagonista transrealista não é apresentado como um tipo de super-herói. O protagonista transrealista é um neurótico inútil, como nós mesmos sabemos ser.
É bem mais egoístico utilizar uma versão idealizada de si mesmo, fantasiando-a, e tendo este 'para-você' desabafando a sua vontade através de embalagens flexíveis escravas. O protagonista transrealista não é apresentado como um tipo de super-herói. O protagonista transrealista é um neurótico inútil, como nós mesmos sabemos ser.
O
artista transrealista não pode predizer a forma final de seu
trabalho.
O romance transrealista cresce organicamente, como se tivesse vida própria. O autor pode apenas escolher personagens e cenários, introduzir este ou aquele elemento fantástico e direcionar para certas cenas chaves. Em condições ideais, o romance transrealista é escrito na obscuridade, sem uma linha geral ou esboço. Se o autor sabe precisamente como seu livro irá se desenvolver, então o leitor irá advinhá-lo também. E um livro previsível não nos interessa. Todavia o livro deve ser coerente. Concorde comigo - a vida quase sempre não faz sentido. Mas as pessoas não irão ler um livro que não tem enredo. E um livro sem leitores não é efetivamente um trabalho de arte. Um romance de sucesso, de qualquer tipo, deve carregar seus leitores consigo. Como é possível escrever tal livro sem um esboço? É semelhante a desenhar um labirinto. Para desenhar um labirinto precisamos de um inicio (personagens e cenário) e alguns objetivos (cenas chaves). Um bom labirinto força-o a percorrer objetivos de uma forma coerente. Quando você desenha um labirinto, você começa com um caminho, mas deixa um monte de outros caminhos por percorrer. Escrevendo um romance transrealista coerente, você inclui um certo número de acontecimentos sem explicação através de seu texto. Coisas para as quais você não sabe a razão. Mais tarde você amarra estas pontas soltas, das narrativas ramificadas. Se nenhuma ligação está disponível, você volta atrás e a reescreve (como se apagando uma parede do labirinto). Apesar de a leitura ser linear, escrever não o é. (IDEM, pp. 1-2)
O romance transrealista cresce organicamente, como se tivesse vida própria. O autor pode apenas escolher personagens e cenários, introduzir este ou aquele elemento fantástico e direcionar para certas cenas chaves. Em condições ideais, o romance transrealista é escrito na obscuridade, sem uma linha geral ou esboço. Se o autor sabe precisamente como seu livro irá se desenvolver, então o leitor irá advinhá-lo também. E um livro previsível não nos interessa. Todavia o livro deve ser coerente. Concorde comigo - a vida quase sempre não faz sentido. Mas as pessoas não irão ler um livro que não tem enredo. E um livro sem leitores não é efetivamente um trabalho de arte. Um romance de sucesso, de qualquer tipo, deve carregar seus leitores consigo. Como é possível escrever tal livro sem um esboço? É semelhante a desenhar um labirinto. Para desenhar um labirinto precisamos de um inicio (personagens e cenário) e alguns objetivos (cenas chaves). Um bom labirinto força-o a percorrer objetivos de uma forma coerente. Quando você desenha um labirinto, você começa com um caminho, mas deixa um monte de outros caminhos por percorrer. Escrevendo um romance transrealista coerente, você inclui um certo número de acontecimentos sem explicação através de seu texto. Coisas para as quais você não sabe a razão. Mais tarde você amarra estas pontas soltas, das narrativas ramificadas. Se nenhuma ligação está disponível, você volta atrás e a reescreve (como se apagando uma parede do labirinto). Apesar de a leitura ser linear, escrever não o é. (IDEM, pp. 1-2)
A ideia, tão simples, é
libertar-se dos maniqueísmos, abraçar as idiossincrasias da
contemporaneidade e oferecer um programa de leitura e criação que
sejam desafiadores, onde cada mente é capaz de oferecer uma nova
realidade, uma nova interpretação, em constante abertura de
significados. A leitura deveria servir como um meio à reflexão, não
como uma ferramenta condicionante, parte do sistema onde o “público”
inerentemente acaba retornando aos programas diários de TV e
noticiários e a roda-viva de todo dia.
Da
mesma maneira, em Tocandoanu para Cantagalo, é
comum que certos temas acabem por permear toda a história, assim
como o comportamento das personagens: embora o Darío Vuturuá de A Volta do Umbigo, Disgramento,
Macuconha e
A Bela Máscara
sejam essencialmente o mesmo personagem, ele difere de uma narrativa
da outra quanto ao local de moradia, trabalho e, no caso da web-série
Na terra dos pésjuntos, até mesmo em
relação à personalidade. Por outro lado, Zacarias é sempre quase
relatado como alguém obcecado por um painel de fios vermelhos onde o
destino das personagens parece estar pré-estabelecido, sendo que em
Disgramento
o tal painel não aparece e nA
Volta do Umbigo ele
surja com um dos pés amputados, enquanto em Na
terra dos pés juntos,
Zacarias não passe de uma sombra sinistra que controla todos os
eventos, que, embora nunca tenha sido mencionado nos episódios
filmados, aparece em todos os roteiros.
Ao
se elucubrar sobre as personagens e seus múltiplos direcionamentos,
temos de nos deter sobre a questão temporal profundamente arraigada
às narrativas de Tocando
anu para Cantagalo.
Posto que é intenção do autor coadunar todos os eventos numa mesma
linha temporal, ele tem também de lidar com as dificuldades impostas
pelo próprio impulso de reescrever constantemente toda a obra –
afinal, se o quadrinho A
Volta do Umbigo,
o conto As
voltas do umbigo,
o romance Disgramento
e as postagens iniciadas com As
metáforas do cigarro,
no site Arames da Cerca, praticamente contam as mesmas histórias,
elas também mostram divergências gritantes quanto aos caminhos do
recém-chegado Darío Vuturuá a Macuco. Isto sem contar o conto
DoppelgangerizaçãoTransdimensional de Macuco,
que apresenta a possibilidade de que Darío Vuturuá e Tompinhão
Coelho (um dos protagonistas de Macuconha)
sejam doppelgangers.
quarta-feira, 29 de junho de 2016
Cinema Novo e Tropicalia se reencontrando em quadrinhos
Nessa altura do campeonato, você provavelmente já se deparou com o trailer de Pássaros Artificiais... E se ainda não viu, clique aí.
Prontinho. Já viu? Reviu? Assistiu dando pausas, tentando pegar as coisas divertidas que o Cristiano Botelho enfiou no menos de um minuto de vídeo? (Repararam no Hieronymus Bosch na janela?)
Então, você também deve ter notado o seguinte comentário do cineasta Délio Freire:
Se você chegou até aqui, então já sabe que somos bastante ambiciosos com o que tratamos aqui. Não apenas com a forma, mas também com o conteúdo. Esta não é uma história fácil, tampouco o é para leitores fáceis. Queremos provocar, tocar fogo, te adoentar.
Novamente, se você chegou até aqui, também deve ter percebido que até trilha sonora nós montamos, não é? Pois bem, duas honrosas exceções estão (?) aí: Raul Seixas e Tom Zé. Um não foi tropicalista, o outro é o legítimo, se bem que praticamente expulso no auge do movimento.
Talvez (é bem provável que seja isso mesmo), mais do que tudo o que você viu, leu ou escutou até agora, são esses caras as grandes forças motrizes dessa incerteza de acontecimentos que movimentam a constelação de histórias e tramas que dão nó em Pássaros Artificiais.
Discutiremos isso melhor amanhã. Por hoje, fiquem com as duas versões da página que é apresentada no trailer. Boa leitura!
Talvez (é bem provável que seja isso mesmo), mais do que tudo o que você viu, leu ou escutou até agora, são esses caras as grandes forças motrizes dessa incerteza de acontecimentos que movimentam a constelação de histórias e tramas que dão nó em Pássaros Artificiais.
Discutiremos isso melhor amanhã. Por hoje, fiquem com as duas versões da página que é apresentada no trailer. Boa leitura!
sábado, 25 de junho de 2016
A Máquina de Escrever
Seguimos com nosso ritual sabático de apresentar um personagem potencialmente desconhecido do universo de Tocando anu para Cantagalo. O desta semana, assim como da anterior, é uma das pessoas que está por trás de quase tudo até agora:
Surgido no roteiro da HQ não desenhada A
Máquina de Escrever, Pedro Conselheiro é um escritor paranóico, que passa a ser assombrado
por personagens de suas histórias, cujos trechos aparecem, em
recordatórios, por toda a narrativa. A história é contada através
do ponto de vista do investigador paranormal Daniel Garcia, que a
todo momento se divide entre a incredulidade e o mergulho nos
delírios de Pedro Conselheiro. Dentre as personagens, destacavam-se
a secretária, que não aparece, mas se faz presente pelos cinzeiros
repletos de guimbas de cigarro que deixa para trás, a musa juvenil
que atormenta os sonhos molhados do escritor e o assistente do
investigador, de nome Diego, que desaparece durante uma visita no
hospital.
Presente em Disgramento (ciranda de aço com rosa), Pedro Conselheiro é o principal colaborador de Antonio Izabel na criação da Orquídea, a organização artística por trás dos eventos do livro. Pedro é a consciência por trás de todas as tramas, ganhando uma personalidade definidora a partir dos desenhos de Antonio Eder. Sua participação em Pássaros Artificiais é muito marcante, assim como os traços de Antonio.
sexta-feira, 24 de junho de 2016
A Metaficção
Onde
é o lado de lá da realidade? Para onde convergem, de onde procedem
os fios que tecem a trama de nossas vidas? E quem observa essa trama,
fora do tempo e do espaço, entre as frestas e batidas do coração?
A resposta está na Teoria da Flor de Lótus, e pelas ruas desta
Macuco literária e alucinógena, desta Macuco alucinada e reflexiva,
onde a realidade é desfolhada pelo sopro suave de um tempo
não-linear, e as histórias que tomam forma apontam para O Que não
tem forma, nem nunca terá.
Lucio Manfredi, escritor, roteirista e dramaturgo
A postagem de hoje é sobre metaficção, segunda parte do Manifesto Tocando anu para Cantagalo: literatura
sobre literatura, onde, embora se saiba personagem, o autor ainda é
uma figura externa, buscando na experiência narrativa mais do que a
construção de um arco ficcional relevante, uma história de ecos
que se traveste de completude nas migalhas do pão. E se essa opção
do micro tomado pelo macro parece dotada de uma grandiloquência
exacerbada, lembramos que as ambições desta empreitada não se
propõem a ditar
as regras, desenvolver uma linguística
“definitiva”
de uma geração de
criadores,
no que concerne à narrativa regionalista. A intenção é o
picaresco, o
agoniante,
a recriação de uma realidade insubmissa às leis da ficção,
entregando a criação de personagens a uma mutação constante;
Como dito em postagem anterior, tudo se conecta pelos Fios de Zacarias, mas não apenas por ele.
Sei que Darío também tivera contato com o painel de Zacarias, apesar de não saber como isto o afetou. Teve gente, no passado, que viu aquilo como algo maligno. As conexões estariam dispostas em formato muito semelhante as ruas e bairro de Macuco. Um amigo, Pedro Neto, garantiu-me que chegou a identificar praças e viradores na multidão de oroboros vermelhos que pareciam infestar-se de maneira vívida pelo lençol pendurado na parede velha. Darío é um encantado pela multitude familiar e caoticamente orgânica que ele encontra nas cidades do interior, e Macuco em particular lhe traz nuances muito atrativas. Me parece que ele passa horas e horas trancado e debruçado sobre a máquina de escrever, aparentemente tentando descoerentizar as próprias histórias, implicando uma complexa rede de ações que não necessariamente se interligam, apenas existem por si próprias, alheias as vontades temporais a que se submetem certas narrativas. (...) Ele diz que o que está fazendo, o que está escrevendo, implica em converter o imaginário em algo real, esperando tocar as pessoas, recuperar suas vontades de integração e encadeamento de eventos. Algo que, ao mesmo tempo em diz buscar uma nova integração de pessoas em lugares, parece trabalhar muito melhor com a ideia romântica de se atravessar o fluxo do tempo, arregaçar as limitações naturais e botar pra foder na panela de caldo quântico do que já passou e passará.
Visto que o presente trabalho é
também uma cartografia sobre a composição e arregimentação de
elementos e histórias diversas, que se entrelaçam a fatos
cotidianos e observações sobre a memória recente do município de
Macuco, é válido que se pare para pensar por um momento como a
metaficção local pode ser utilizada pelo autor de Tocando anu para
Cantagalo.
A
metaficção inclui as questões da pós-modernidade conforme Jair
Ferreira dos Santos, “(...) o
romance deve se tornar uma imitação deliberada do romance, dos
gêneros literários ou de qualquer outro texto apto a injetar-lhe
sobrevida.” (SANTOS,
1995, p. 62) Para Jair, a pós-modernidade garante ainda uma
metaficção, literatura sobre literatura, onde o burlesco tem um
papel importante:
O
burlesco, que é o exagero cômico, vai ser o tom dominante na
metaficção. Uma estética jocosa, fantasista, não-modernista, do
absurdo passará por ele. Gênero menor, modo temático e estilo
narrativo, o burlesco, em ação na literatura inglesa desde o séc.
XVII, surrupiado ao francês Scarron, é um dispositivo de paródia
que faz rir pela incongruência entre o fundo e a forma (algo assim
como transpor a Eneida com a linguagem virgiliana para o meio de uma
família calabresa vivendo hoje no Brás). Para fazer rir, o burlesco
convoca toda a baixaria: sexo, violência, drogas, loucura,
perversão, escatologia – a parte maldita com a qual o
pós-modernismo, sem ilusões ante a sociedade tecnológica, desanca
o projeto Iluminista em sua crença na emancipação do homem pelo
conhecimento e o progresso. Nessa mesma trilha, o burlesco é ainda a
parte intertextual por onde os autores pós-modernos cruzam o fosso
(bem modernista) entre arte culta e arte de massa: ficção
científica, romance policial, conto de fadas, pornografia, western e
quadrinhos são alegremente canibalizados pelos espíritos mais
requintados. (IDEM, pp. 62-3)
Vale
dizer ainda que, embora se saiba personagem, o autor ainda é uma
figura externa, que supostamente deveria prestar atenção a detalhes
e controlar as ferramentas narrativas, tal qual nos instrui Foucault
em seu ensaio O que é
um autor?:
(…)
A noção de autor constitui o momento forte da individualização na
história das ideias, dos conhecimentos, das literaturas, na história
da filosofia também, e na das ciências. Mesmo hoje, quando se faz a
história de um conceito, de um género literário ou de um tipo de
filosofia, creio que tais unidades continuam a ser consideradas como
recortes relativamente fracos, secundários e sobrepostos em relação
à unidade primeira, sólida e fundamental, que é a do autor e da
obra. (FOUCAULT, 1992, p. 33)
Se
o texto aponta para o autor, se a sua relação é, em primeiro
lugar, com o autor, então as personagens seriam um reflexo disso,
não? Foucault (1992) antes de tudo nos lembra que a escrita, hoje, é
liberta dos temas da expressão, só se referindo a si mesma, sem no
entanto, se aprisionar em sua interioridade: “(...) identifica-se
com a sua própria exterioridade manifesta. (…) é um jogo ordenado
de signos que se deve menos ao seu conteúdo significativo do que à
própria natureza do significante.” (IDEM, p. 35) O jornalista e
acadêmico Antonio Olinto, ao falar sobre a obra de James Joyce, nos
diz algo semelhante, alertando-nos para o fato de que
As
palavras também morrem. Deixam de ser prenhes de sentido, tornam-se
meros sons vazios, fofos, sem fixação no pensamento. Para Joyce,
mesmo o instrumento de comunicação diárias estava tocado de
decadência. Então quebrou os vidros que o envolviam, e através dos
quais só via fiapos de movimentos vagos na paisagem, e criou um
mundo à imagem e semelhança de sua angústia. (OLINTO, 2008, p. 61)
“Tocando
anu para cantar galo”
ou apenas Cantagalo1,
é expressão usada há muito para designar aqueles que encontram-se
em situação de desespero, com o dinheiro curto ou simplesmente
sentindo-se prejudicados de alguma forma. O anu é um pássaro preto,
que, conforme se aprende na região, vive próximo a cercas e pastos
onde carrapatos se proliferam. De certa forma é um pássaro de
mau-agouro, seja pela sua cor, seja pela sua proximidade com os
corvos, ainda que na região também seja comum a presença de anus
brancos, mais atrativos esteticamente.
Mas
são os anus pretos e o mau-agouro que trazem com eles que dão o tom
dessa farsa que se pretende analisar ao mesmo tempo em que é criada.
Uma farsa como todas, que abre mão dos referentes, que anula o
realismo e cujo autor está imerso em suas angústias.
O
romance Tocando anu para Cantagalo e as histórias que o formam
abdicam em parte da realidade para a gestação de uma realidade
nova, diferenciada do palpável, adotando das narrativas modernas,
dos gêneros populares e das mídias que os difundem, suas principais
características: serialização das tramas e construção de uma
realidade calcada em um determinado número de elementos que produzam
uma segurança metafórica, com a criação de uma mitologia
particular, dando unidade às diversas tramas. Embora no texto pareça
que há uma exclusão do “onde é que eu tô, para onde é que eu
vou e de onde que eu sou?” como questões de vital importância,
Jair Ferreira dos Santos nos lembra que:
A
metaficção no entanto não é apenas uma fisiologia do escabroso e
do bizarro nem os funerais de gêneros que se esgotaram.
Contra-romance que imita o romance, ela quer ser uma nova
epistemologia literária, um desmascaramento das convenções
ficcionais mantidas intactas pelo próprio modernismo, e por aí,
criando mundos verbais alternativos, ser um ataque à atualidade,
onde, segundo Borges, é total “a contaminação da realidade pelo
sonho”. (SANTOS, IDEM, p. 63)
Ou
seja, busca-se na experiência narrativa muito mais do que uma
construção de um arco ficcional relevante. É uma história de ecos
que se traveste de completude nas migalhas do pão (se é que podemos
fazer uma alusão a Proust nesse ínterim). E se essa opção pelo
micro tomado pelo macro parece dotada de uma grandiloqüência
exagerada, lembramos que as ambições deste projeto não visam o
desenvolvimento lingüístico “definitivo” desta geração no que
concerne à narrativa regionalista. Longe de tal ousadia. A intenção
é recriar a realidade com um certo ar picaresco.
Nessa
mesma trilha, o burlesco é ainda a ponte intertextual por onde os
autores pós-modernos cruzam o fosso (bem modernista) entre arte
culta e arte de massa: ficção científica, romance policial, conto
de fadas, pornografia, western e quadrinhos são alegremente
canibalizados pelos espíritos requintados. (SANTOS, IBIDEM IDEM, p.
63)
E
como recriar uma realidade que não se submete mais às leis da
ficção, quando as ferramentas narrativas várias que se apresentam
na contemporaneidade, praticamente todas se servem e bebem
exaustivamente de uma revolução generalizada, provocada pela
literatura jovem dos beats?
Pois, mesmo que efetuado há mais de cinqüenta anos, o movimento,
hoje não tão jovem, ironicamente permanece longe de ser careta.
Como se atrever à criação de um universo reflexivo e vivo da
pulsante e infinitamente criativa (e ao mesmo tempo quadrada,
retrograda) sociedade contemporânea?
John
Bart diz que a literatura dos últimos cinqüenta anos passou por
dois processos distintos e, inerentemente, iguais. Em 1967, no ensaio
A Literatura do
Esgotamento, declarou
que a busca por uma ruptura do pensamento dentro das linhas
tradicionais era uma rebeldia que se entregava à auto-devoração,
metaficção por auto-conhecimento (o texto consciente de si mesmo).
Curiosamente, enquanto Barth diferenciava o romance realista (sobre o
mundo que é), o romance modernista (sobre o mundo que poderia ser) e
o romance pós-moderno (sobre mundos que não podem ser, que se
contradizem), Gabriel García Márquez despeja sobre o mundo o
multitudinário Cem Anos de Solidão, que alimenta personagens de
contos e novelas anteriores, além de municiar o autor com cenários
que viriam a ser aproveitados futuramente em sua própria obra. Sobre
isto, diz Mario Vargas Llosa:
Dificilmente
poderia fazer, uma ficção posterior a Cem Anos de Solidão, o que
esta novela faz com os contos e novelas precedentes: reduzi-los a
condição de anúncios, de partes de uma totalidade. Cem Anos de
Solidão é essa totalidade que absorve retroativamente os estágios
anteriores da realidade crítica, acrescentando novo material e
edificando uma realidade com um princípio e um fim no espaço-tempo:
como poderia ser modificado ou repetido o mundo que esta ficção
destrói depois de completar? Cem Anos de Solidão é uma novela
total, na linha dessas criações absolutamente ambiciosas que
competem com a realidade real de igual para igual, entregando uma
imagem de vitalidade, vastidão e complexidade qualitativamente
equivalentes. (LLOSA, Mario Vargas, 2007, p. XXV)2
Treze
anos depois, Barth voltaria ao tema com o artigo A
Literatura da plenitude,
onde ele revela ter repensado a questão, observando que a literatura
pós-moderna deve esvaziar-se da necessidade de figurar em alguma
escola ou listagem, assim como não é necessariamente um
desenvolvimento do projeto modernista, porém descartando o sentido
da criação como algo sublime, deixando a visão romântica de lado
em prol de uma literatura que não imita nem repudia seus genitores.
Ele recusa a necessidade de uma literatura que se soerga a uma
sobrevida baseada na quantidade de textos analíticos que acompanhem
o leitor durante a jornada empreendida na leitura. “Ninguém
precisa mais de outros Finnegans
Wake acompanhados de
suas equipes de professores dedicados a explicá-los” (BARTH apud
SANTOS, 1995), disse Barth, que também elogiou o Cem
Anos de Solidão de
García Márquez como uma literatura deliciosa, “rica em proteínas”
(IDEM).
Se
os modernistas, erguendo a tocha dos românticos, nos ensinaram que a
linearidade, racionalidade, consciência, causa e efeito, ilusionismo
ingênuo, linguagem transparente, anedota inocente e convenções
morais de classe média não são toda a história, então, segundo a
perspectiva das últimas décadas do nosso século, poderíamos
admitir que o contrário de todas essas coisas também não são toda
a história. Disjunção, simultaneidade, irracionalidade,
anti-ilusionismo, anti-reflexão, o-meio-como-mensagem, olimpianismo
político, a idéia do artista como herói e um pluralismo moral que
beira a entropia tampouco são toda a história.” (IDEM)
É uma maneira de se estabelecer
conexão com uma realidade literária fictícia em andamento com base
em narrativas contemporâneas.
Seus
próprios dramas, no entanto, geram a auto-sustentação e constante
revigoração pela grande variedade de frentes midiaticas às quais
as personagens são expostas. Assim como intentamos fazer aqui com os
diversos caminhos narrativos de Tocando
anu para Cantagalo.
Então,
se há alguma temeridade no que se refere à construção das
personagens, antes há essas outras, mais imediatas, onde a linguagem
e as propostas às quais o autor se entrega, devem ser trabalhadas e
pensadas como objetos em mutação constante. Afinal, Tocando
anu para Cantagalo é
obra em progresso iniciada em 2002, treze anos, uma adolescência e
um começo de vida adulta atrás, donde se conclui que o autor aqui
entregue a esta cartografia muito viveu e, aos olhos dele, até
penou, riu, amou e sobreviveu. Assim, suas influências, gostos e
deliberações se modificaram o bastante para justificar as
transformações as quais se submeteram também as personagens.
1
Cidade natal de Euclides da Cunha e do autor deste texto.
2
Difícilmente
podría hacer uma ficción posterior con Cien
años de soledad
lo que esta novela hace com los cuentos y novelas precedentes:
reducirlos a la condición de anúncios, de partes de uma totalidad.
Cien
años de soledad
es esa totalidad que absorbe retroactivamente los estádios
anteriores de realidad ficticia, y, añadiéndoles nuevos
materiales, edifica una realidad con un principio y un fin en el
espacio y en el tiempo: ¿cómo podría ser modificado o repetido el
mundo que esta ficcíon destruye después de completar? Cien
años de soledade es
una novela total, en la línea de esas creaciones demencialmente
ambiciosas que compitem con la realidad real de igual a igual,
enfrentándose una imagen de una vitalidad, vastedad y complejidad
cualitativamente equivalentes. (tradução
minha)
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